Amor Ilimitado - A dor de amar demais.

quarta-feira, 10 de março de 2010

VIOLÊNCIA: UMA VARIAÇÃO DO JEITO BIZARRO DE SER NORMAL, Leitura de fatos violentos publicados na mídia, Ano 10, nº 06, 08/03/10.




 

 

Leitura de fatos violentos publicados na mídia

Ano 10, nº 06, 08/03/10 

VIOLÊNCIA: UMA VARIAÇÃO DO JEITO BIZARRO DE SER NORMAL

 

           Diante da saraivada de ocorrências violentas registradas diariamente pela mídia torna-se impossível fazer caso de tudo o que circula a propósito do tema. De um modo geral, os episódios podem ser, grosso modo, classificados como inacreditáveis, porém, quando se observa mais detidamente, percebe-se que há casos mais inconcebíveis que outros. E a natureza mais ou menos inacreditável do evento violento está, muitas vezes, relacionada à sua maior ou menor incidência no meio social. Nesse sentido, em determinados períodos e espaços, alguns tipos de ações violentas são recebidos como normais enquanto outros são tidos como demonstração de anormalidade.

 

           Essa divisão orienta o modo como, em geral, os indivíduos reagem às ocorrências violentas e às tomadas de posição das instituições públicas diante de cada caso; serve, também, para atualizar juízos morais, normas e comportamentos relacionados à questão. Entretanto, a referida divisão às vezes fica difícil de ser aplicada quando da necessidade de compreensão de determinados episódios, especialmente quando esses são compostos por elementos críveis e incríveis, raros e habituais, embaralhando a visão que é forjada por uma classificação que tende a atribuir um sentido de normalidade ou excepcionalidade aos eventos.

           Um exemplo dessa situação de ambiguidade se deu no Rio de Janeiro com a morte (em 27 de fevereiro de 2010) do cabo Guttemberg Conceição quando o mesmo buscava finalizar "tratativa" feita com traficantes para a devolução do automóvel da esposa do coronel Carlos Henrique Alves de Lima que havia sido roubado junto com outros pertences da vítima. De acordo com informações de vários meios de comunicação, o cabo teria ido ao Morro da Pedreira com R$ 2.000 com o objetivo pagar o valor negociado com os traficantes para a devolução do veículo, porém assim que adentrou a favela foi assassinado.    

           O caso contém elementos habituais como o já sistemático roubo de carro, porém os aspectos relativos ao pacto com os traficantes excedem à "regra" ou aos protocolos relativos às providências cabíveis. Alguns pontos ainda não relatados nessa leitura tornam mais excêntrica a história. De acordo com o jornal O Globo de 01 de março, o coronel Carlos Alves Lima informou que foram sua mulher, sua irmã e sua sobrinha que iniciaram as negociações com os traficantes e que sua esposa estava se sentindo culpada por ter perdido a "vistoria no Detran e temia que o seguro não fosse pagar (a indenização)". Já no Jornal do Brasil há um dado complementar que compromete o coronel: "O coronel Lima seguiu para a favela com o cabo Gutemberg, que era seu motorista. Ao chegar na favela, o cabo entrou sozinho na comunidade atrás do veículo roubado. Minutos depois, foi morto com vários tiros, e o carro não foi recuperado".

           O insucesso na operação de captura expôs uma possível prática de alguns policiais e de suas famílias quando são vítimas de roubos e, provavelmente, de outros ilícitos: em vez de se chamar a polícia opta-se pelo bandido. Eis a confusão e o desconforto para os receptores das informações. Ao se lançar mão dessa alternativa exótica cria-se a impressão de fragilidade assumida no que se referem às tarefas ordinárias na área da segurança pública. Mais grave é a indicação de conluio e intimidade entre setores da polícia com o universo de criminosos e isto se estende aos familiares que passam a ter acesso direto aos membros de uma quadrilha e fazem negociação com vistas à devolução de objeto roubado.

           Mas é sob o prisma da "normalidade" que o caso enseja uma necessidade de reflexão grave. O cabo que morreu era um subordinado do coronel e foi ele (o cabo) quem, em última análise, desafiou a força física do crime e isto o levou à morte.  E o seu superior agora informa que ele era seu vizinho, seu amigo, mas isto não retira a disparidade entre os dois no que concerne à ordem hierárquica. Seria mesmo possível, como parece sugerir o coronel, que o cabo se envolvesse em uma tal iniciativa tão desguarnecida de comando? Por que os dois "amigos" não entraram juntos na Pedreira?

           É dedutível, pelas informações veiculadas através da mídia, que o policial atuava com o consentimento (quem sabe, com ordens) de seu superior, podendo-se supor ser aquela situação compatível com a máxima "a soldado mandado não tem crime". O insucesso da ação delituosa aqui tratada resulta da coincidência de um crime por sobre o crime. Caso a operação não fosse frustrada com o assassinato do policial, provavelmente o Honda Civic 2007 seria devolvido à proprietária e o procedimento de captura seria visto como um jeitinho peculiar e "eficaz" de se resolver pendências através de procedimentos paralelos aos parâmetros legais.


           Entre os efeitos simbólicos que servem como arremate para o caso fica saliente a embaraçante impressão de que há integrantes da polícia que depositam uma estranha confiança no mundo que deveria ser razão de ser de seu combate. Como ficam os moradores do Rio de Janeiro, diante de uma tão insólita situação? 

 

 

 



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